segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O deus-cor-de-sol

É que, nesse tempo, os deuses visitavam a terra sob a forma de seres terrenos, humanos ou não, e também se cansavam, tinham sede e fome, como qualquer um de nós. Na sua maior parte, esses deuses eram homens e mulheres, mais velhos ou mais novos, crianças até. Dizia-se que eram muito belos, ou que tinham qualquer coisa de inexplicável dentro de si que se mostrava em cada gesto ou movimento do corpo, em cada palavra ou silêncio, como um estranho fascínio, doce e inquietante. Havia quem dissesse que se conheciam pelos olhos, pelo brilho escuro e intenso que emanava mesmo dos mais claros e transparentes, num misto perverso de inocência e maldade. Mas havia também deuses que apareciam na forma de animais e plantas e outros ainda que fingiam ser elementos da natureza: então esses eram água de rios e mares, eram solos férteis ou áridas areias desérticas; eram montanhas, rochedos, falésias, dunas … e eram labaredas de fogo, lava de vulcões; eram vento e fumo, vapor de água, ar e mais ar, atmosfera e o que está mais para além. Estes eram deuses incógnitos, que não gostavam de ser identificados, ocultos e imprevisíveis. Era difícil reconhecê-los e só aos sábios ou magos era concedido esse poder.
Mas o deus que visitou o reino antigo do rei sábio veio na forma de um jovem, desses que nunca têm idade porque o tempo não faz sentido quando se fala de um deus. Descrevê-lo é impossível porque a memória que ficou gravada na lenda é já vaga e apenas vislumbra a fugaz imagem de um homem muito belo, todo ele cor-de-sol. Não parecia o sol nem trazia nenhum raio de fogo ou coroa solar. Mas era a cor, como se fosse um homem de sol, feito de sol. Não me perguntem como é que ele assim parecia e nem tentem sequer pensar o que isto quer dizer, porque há coisas que não se explicam nem pensam. Elas são o que são, e é tudo.
O deus cor-de-sol recostou-se à velha árvore de folhas escuras e frutos dourados do fundo do jardim do rei e adormeceu à sua sombra. Quando acordou, lembrou-se vagamente de que tinha sonhado mas não conseguiu saber sobre o quê. Teve uma breve sensação de angústia que logo se desvaneceu, levada pela aragem morna daquela tarde de Verão. Espreguiçou-se no tapete de musgo verde sob a imensa copa da árvore e viu o azul claro do céu recortado pela folhagem. Por momentos achou graça a contar os pequenos raios de sol que lá conseguiam esgueirar-se pelo emaranhado de ramos e folhas, e foi então que, fixando melhor a atenção nos espaços de luz no interior escuro da árvore, descobriu os magníficos frutos redondos e dourados, de um brilho ao mesmo tempo metálico e sedoso. Apeteceu-lhe agarrar um deles e prová-lo. Não, talvez o guardasse para o levar consigo como recordação. Mas, pensando melhor… devia ser tão bom, tão saboroso e depois… havia naquele pomo dourado e brilhante qualquer coisa de surpreendente, uma espécie de magia oculta, um lugar de proibição e de glória. Num escasso vislumbre pareceu-lhe entrar de novo no sonho de há momentos. Uma luz dourada envolvia todas as coisas… sim, lembrava-se da cor, daquela luminosidade quente e suave como um véu. Mas depois do véu… o que é que havia, que é que se escondia lá atrás? E tudo se esvaía e esfumava no corredor enublado que é a memória dos sonhos. É que, uma vez assumindo a forma humana, nem aos deuses é permitido regressar ao tempo perdido do sonho. Só se voltarem a sonhar. “É tudo um sonho!…” disse para si próprio, rindo baixinho da sua humana condição, ainda que fingida e temporária. Mas não se apoquentou muito e aceitou o desafio com a mordaz sabedoria de um deus. Deixou-se embalar no tempo dos homens e deu por si a sentir-se frágil como um menino que, ao abrir os olhos, precisa da sua mãe para lhe afagar e beijar os cabelos, para lhe dar colo e dizer um sem número de patetices em jeito de cançoneta. Riu baixinho e, em segredo, invejou os homens, porque corria neles o tempo… para os deixar nascer e também morrer. Um calafrio momentâneo percorreu-lhe o corpo ao lembrar o tempo da morte. Era tão difícil aos homens encarar e aceitar a morte - mas porquê, se a morte era apenas um outro espaço da vida, uma medida e um tempo diferentes? Os homens conhecem pouco e sabem ainda menos. Têm uma visão limitada da realidade, uma noção patética da percepção que os sentidos lhes dão desse mesmo real. São feitos de uma natureza algo embotada, mas tão arrogante; além disso, falta-lhes aquele senso mais apurado da ironia e também do ridículo. Por isso, é-lhes sempre difícil aceitar o desconhecido, e a morte é isso mesmo, o lugar inominado, o tempo sem relógio nem horas, o presente de todas as incertezas, de todas as dúvidas e angústias. Por vezes, os sonhos são a memória dos fantasmas que povoam o imaginário da morte nas mentes humanas. Mas outras vezes, os sonhos são portas abertas para os caminhos desse conhecimento que o medo da morte oculta. Mas era escusado continuar… não havia nada a fazer, restava apenas esperar que o tempo fosse cumprindo o seu papel de mestre da humanidade.


conto escrito por uma criança in:  http://childrensliterature.blog.com/tag/conto-infantil/

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